terça-feira, agosto 01, 2006

Presidente Varga
Biografia de uma Avenida

Um filme de Sérgio Bloch

Sinopse

Documentário de longa-metragem, com duração aproximada de 75 minutos, tendo como personagem principal a sexagenária Avenida Presidente Vargas, uma das mais importantes vias do Rio de Janeiro, localizada no coração da cidade.

O documentário (abordagem do tema)

Além de ser uma das principais artérias da cidade, a Presidente Vargas é um retrato das transformações ocorridas no país nos últimos cem anos. Por ela passam diariamente empresários e desempregados, banqueiros e contínuos, bancários, funcionários públicos, policiais, garis e financistas, contrastando trabalho formal e informal, opulência e abandono, caos e silêncio.

No documentário, a Avenida será apresentada desde a sua concepção até os dias atuais, sem obedecer, porém, a ordem cronológica dos acontecimentos, de forma que suas diversas épocas se entrecruzem, a reboque dos assuntos que serão abordados. Este ‘passeio’ pela Avenida será conduzido a partir de alguns de seus freqüentadores, que abrirão ‘janelas’ para fatos do passado, além de revelarem aspectos do presente que, para quem a atravessa diariamente, podem passar despercebidos. Esses personagens nos ajudarão ainda a revelar as diferentes relações que cada grupo social mantém com o espaço público urbano em geral, e com a Avenida, em particular.

Para que possamos desvendar os diversos aspectos da vida da Presidente Vargas – social, econômico, imobiliário, cultural, viário, etc - vamos acompanhar uma jornada na vida de cada um dos nossos personagens, permitindo que eles se encontrem pelos seus caminhos. Márcia, por exemplo, que é trocadora da linha de ônibus 455, e passa até oito vezes ao dia pela Presidente Vargas, poderá estar, numa de suas viagens, cobrando o troco do proprietário de uma banca de jornais que está há mais de 40 anos na Avenida, onde Oswaldo, funcionário público do Banco Central, costuma comprar seu jornal predileto. Poderemos ainda acompanhar um dia na vida das irmãs Henriqueta e Ismênia Storino, aposentadas, que até hoje aguardam a indenização do Estado pelo despejo de sua família, nos anos 40, por conta da construção da Avenida. Durante o percurso que faremos com elas, as irmãs se sentarão para saborear um sanduíche de pernil no Bar e Leiteria Santana, onde um grupo de senhores, formado por ex-moradores da velha Praça Onze, se reúne mensalmente para relembrar os ‘bons tempos’ e, entre goles de cerveja, recordar antigas marchinhas de carnaval.

Continuando o ‘passeio’, veremos o entra-e-sai de um Salão de beleza em pleno Mercado Popular da Central do Brasil, que está prestes a abrir uma franquia. Numa de suas ‘poltronas’, encontraremos Seu Ademar, aposentado, que ali sentou para aparar os cabelos: “Aqui no salão do Jorge é ótimo, fica aberto o dia todo, não precisa marcar hora e dá até pra abrir conta”, comenta sorrindo.

Por fim, na tentativa de enxergar as inúmeras possibilidades futuras da Avenida, tanto a curto quanto a longo prazo, ouviremos urbanistas, historiadores e antropólogos, bem como a população que nela circula todos os dias.

Breve história da Avenida

Desde os tempos do Império havia projetos para a construção de um canal que fosse navegável e que ligasse o mar à futura Praça Onze, a fim de eliminar o enorme pântano existente nas proximidades da região, hoje conhecida como Cidade Nova. Grandjean de Montigni, arquiteto da missão francesa que acompanhou a família real portuguesa ao Brasil, concebeu ali O Caminho das Lanternas, que ligava o Paço Imperial, então sede do governo, até São Cristóvão, residência do Imperador.

De meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX, diversos projetos foram propostos para aquela região, entre eles o de prolongar a Avenida do Mangue até o Cais dos Mineiros, através da Rua Larga - atual Marechal Floriano. Finalmente, em 1926, um jovem arquiteto francês, Alfred Agache, autor dos primeiros estudos modernos de urbanismo, foi convidado para planejar a Avenida. A reação dos brasileiros foi imediata: além de ter sido dada a preferência a um estrangeiro, as idéias de Agache não levavam em conta as especificidades do mundo tropical.

Mas o governo Vargas tinha planos ambiciosos para a obra. O então prefeito do Distrito Federal, Henrique Dodsworth (1937-1945), previa que a avenida, de 80 metros de largura e quatro quilômetros de extensão, rivalizasse com a Avenue Champs-Elysées, de Paris. Como os especialistas da época acreditavam na expansão da cidade para a Zona Norte, a idéia original era não somente ocupar a avenida com prédios comerciais, mas também com uma zona residencial, capaz de comportar até 300 mil moradores.

Somente em 1939, porém, o projeto de Agache foi posto em prática. Para executá-lo, foram demolidos 525 prédios, além de quatro importantes igrejas, entre elas a de São Pedro dos Clérigos, de 1773, com talhas do mestre Valentim. Partes do Campo de Santana e da Praça Onze, berço da cultura popular, também não foram poupadas. Famílias inteiras tiveram de ser removidas; algumas seguiram em direção aos morros, enquanto outras foram para os subúrbios. Tanta demolição representava um paradoxo para um estado que havia acabado de fundar o Serviço de Patrimônio Histórico. É importante destacar o papel do arquiteto Lúcio Costa que, enquanto presidente da instituição, conseguiu impedir a derrubada da Igreja da Candelária.

No discurso de inauguração, em 7 de setembro de 1944, Edison Passos, responsável pela obra, declara: “Sob o ponto de vista urbanístico, a abertura da Avenida Presidente Vargas concorrerá para melhorar o equilíbrio da massa edificada da cidade (...) Ela será o elemento de valorização e pesará favoravelmente na transformação urbana”. O que se podia perceber, de fato, é que a Avenida, com suas pistas amplas, era mais do que uma obra pública: constituía um retrato fiel da Era Vargas, um projeto antenado com a política desenvolvimentista do país. O progresso precisava passar e deixar para trás um Brasil Velho. Estavam sendo reunidas, enfim, as condições necessárias para a edificação de um núcleo financeiro moderno e próspero.

A Arquitetura do poder

A arquiteta e historiadora Evelyn Werneck Lima, autora de ‘Avenida Presidente Vargas, uma drástica cirurgia’, afirma que “o projeto (...) expressou o urbanismo típico dos estados totalitários, que sempre se serviram de ‘teatros de poder’, onde podiam desfilar suas armas para as multidões”. Carlos Eduardo Sarmento, historiador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas, também vê a Avenida para além de uma solução urbanística: “A Presidente Vargas é claramente um monumento. A idéia de Vargas era criar o perfil de cidade moderna. E também construir um espaço de exercício de poder”.

Ainda segundo Sarmento, a arquitetura dos prédios construídos sob a égide de Vargas são símbolos tão fortes quanto qualquer estátua ou placa de metal. O edifício da Central do Brasil, todo concebido em Art Déco, bem aos moldes da época, é um deles: “Sua marca simbólica é a do relógio, que exercia a disciplina, coordenando as massas de trabalhadores pelo controle das horas”. Outra edificação com o espírito monumental típico desta fase é o Ministério da Guerra, projetado pelo arquiteto Cristiano Stokler, em 1941, totalmente inspirado na arquitetura moderna americana. Já os prédios mais próximos à Avenida Rio Branco só viriam a ser construídos a partir de 1960, inspirados naqueles da cidade de Manhattan.

O Carnaval, o samba e a Praça Onze

“Ó, Praça Onze, tu és imortal...”

Não se pode falar desta Avenida sem mencionar a maior de todas as festas populares, que é o Carnaval. E não se pode falar em Carnaval sem mencionar a Praça Onze. Desde os anos 20, a ‘Pequena África’, como ficou conhecida, foi ponto de encontro de negros de várias origens. Cercada pelas favelas da Saúde, Gambôa, Santo Cristo, Catumbi, Estácio e Mangueira, é desses morros que a Praça vai receber a poesia que fará dela o berço do samba. Se a Cinelândia era o lugar das elites, dos corsos cheios de confete e lança-perfume, a Praça era o território popular onde se fundiam todas as tribos. O carnavalesco Alfredo Herculano revela um aspecto particularmente interessante daqueles tempos: “Uns primos meus estranhavam que eu deixasse a Avenida, com seus corsos deslumbrantes, e fosse para a Praça Onze ver crioulo. O preconceito era por causa da raça, a maioria negro, mulato... a mestiçagem toda”. Ali se destacaram Tia Ciata, João da Baiana, Cartola, Sinhô, Pixinguinha, Donga, Ataulfo Alves, Heitor dos Prazeres, Grande Otelo, Herivelto Martins, Carlos Cachaça, ou seja, grande parte da base do samba, da cultura e do imaginário popular carioca. Hoje, a Praça ainda abriga pelo menos dois importantes palcos de manifestações: a Passarela do Samba e o Terreirão. Resiste teimosamente e, como não poderia ser de outra forma, “agoniza, mas não morre”.

A Avenida nos dias atuais

Se pudéssemos tirar um raio-X da Avenida depois de seis décadas de existência, veríamos que nela ainda existem extensas áreas vazias, que resistiram ao tempo e ao avanço da urbanização. Alguns trechos - como o que vai da antiga sede da Companhia Estadual de Gás ao terreno que hoje abriga a quadra da Escola de Samba São Clemente - lembram a fase pré-avenida. Há ainda terrenos que viraram estacionamentos ou até mesmo depósitos de sucatas de carros, a espera da valorização imobiliária. É possível observar também que até a altura da Uruguaiana, a Avenida é um misto de atividades de escritório e de comércio. Desse ponto em diante, torna-se quase que exclusivamente comercial, o que inclui a presença significativa de vendedores ambulantes. Ali, como no Saara, é possível se encontrar de tudo um pouco, como uma herança do comércio que existia na época colonial.

Outro fenômeno relativamente recente é o aparecimento de Campus Universitários em diferentes pontos da Avenida, dando-lhe uma nova configuração. O horário de saída das turmas da noite, quando a Avenida costumava estar perigosa e deserta, passou a ser povoado pela costumeira aura festiva que ronda as universidades, com direito a vendedores de cachorro-quente e cerveja gelada.

Esta é uma biografia ainda incompleta da mais importante Avenida carioca. Retratá-la num filme é também buscar as possibilidades futuras desse território, intimamente relacionado com a cultura popular carioca.

Breve descrição dos personagens pesquisados

. As irmãs Storino

Assim com aconteceu com muitas famílias, o imóvel dos Storino ficava no caminho do progresso, por isso teve de ser demolido. O que a família não esperava era a inadimplência do então Distrito Federal: há mais de meio século as irmãs Henriqueta e Ismênia aguardam o resultado de uma ação indenizatória contra o Estado, relativo à casa que a Avenida lhes tomou. Mas elas não reclamam. Henriqueta, a mais velha e mais falante, não disfarça a adoração por Getúlio: “Era só ele falar ‘Brasileiros...’ que acabava o mundo. Ele era muito querido. Além do mais, a cidade começava a ganhar muito carros, tinha de ter avenida mesmo”. Hoje, elas vivem no Condomínio Paulo de Frontin, mais conhecido como ‘Balança Mas Não Cai’. “Nós não moramos no ‘Balança’. São 3 prédios. Nós moramos no Edifício Maipu, que é o do meio. O ‘Balança’ é o que faz esquina com a Presidente Vargas. Já o de dentro é o Edifício 77, conhecido também como Onze de Junho, por causa da Praça”, ensina Henriqueta, que viu passar, de sua janela, o Presidente Charles de Gaulle, o cortejo fúnebre de Clara Nunes e a tocha olímpica, entre tantos eventos presenciados por uma vida inteira de Avenida.

. Belmiro

Belmiro é jornaleiro por herança. Ainda menino, ele ajudava o pai a tomar conta da banca, uma das primeiras a ser instalada durante a década de 30 no Largo do Capim. Com tanto tempo de Avenida, confessa que já viu “de tudo” por ali. ‘Capim’, como também é conhecido, está há quase quarenta anos no mesmo ponto e tem fregueses muito antigos: “Tenho muita amizade com o pessoal do Banco Central”, comenta, sem disfarçar o orgulho na voz. Um belo dia, há 25 anos, ao ver uma moça que chegou para comprar uma tabuada para a sobrinha, sentiu que ela era a mulher da sua vida. Dito e feito: ainda hoje, Seu Belmiro está casado com a simpática freguesa, com quem tem três filhos.

. Jorge Cabeleireiro

Jorge já foi padeiro, motorista de caminhão, trocador de ônibus, caixa de supermercado e camelô. Há dois anos resolveu entrar pro ramo da estética: “Comecei fazendo só barba e cabelo masculino, mas depois aprendi a fazer cabelo de mulher também. Hoje faço sombrancelha, escova.. até tinta eu sei passar!”. Há um ano resolveu abrir seu próprio negócio, um salão de beleza que funciona das 9h às 22h, em meio aos camelôs do Mercado Popular da Central do Brasil. “A senhora pinta aqui e lava em casa, porque aqui não tem água não”, comenta com uma freguesa. O aluguel do seu estande lhe custa 140 reais por semana, mas Jorge não reclama: “Cansei de trabalhar no salão dos outros. Aqui eu sou rei! Tô até abrindo uma franquia, a ‘Jorge Cabeleireiros’, com o mesmo padrão de qualidade da matriz, aqui mesmo na Central”, conta feliz.

. Seu Ademar

Quem costuma freqüentar o Centro Cultural Banco do Brasil, fatalmente já encontrou com Seu Ademar, escriturário aposentado e cinéfilo ‘de carteirinha’. Seus diretores prediletos são Vitorio De Sica, Godard, John Ford e Pasolini: “Dependendo do programa, venho todo dia. Mesmo aqueles filmes que eu já vi, eu gosto de rever”. Normalmente, assiste entre 3 a 5 filmes num só dia. Não gosta muito de ir às salas Multiplex nos Shoppings Centers: “O pessoal parece que só vai para comer pipoca, acho muito esquisito”. A verdade é que as idas ao CCBB preencheram sua vida de sentido. “Aqui é um pouco minha segunda casa, me sinto totalmente à vontade. Sou amigo dos porteiros, dos seguranças, do pessoal da limpeza, das moças da bilheteria...só vendo!”, conta, orgulhoso de sua popularidade.

. Raízes da Praça Onze

“Raízes da Praça Onze” é como se chama o grupo de ex-moradores das cercanias da Praça, que foram expulsos da região nos anos 70, devido às obras do metrô. Dentre eles encontramos Plínio, o “filósofo” da turma; Castro, um ex-jogador de futebol, além de exímio “pé-de-valsa”; e Sebastião, que foi garçom do Restaurante Albamar durante 35 anos. Há três décadas, eles se reúnem todas as sextas feiras no Bar e Leiteria Santana para “beber uma gelada”, rever antigas fotos, relembrar os “áureos tempos” e jogar partidas de truco.

. Márcia

Márcia enjoou de trabalhar em casa de família. Foi ficando preocupada com seu futuro, já que em nenhum lugar queriam assinar sua carteira de trabalho : “Não dá, eu preciso pelo menos de um Fundo de garantia, tenho 3 filhos pra criar. E sozinha! Sou Pãe, conhece? Pai e Mãe, ao mesmo tempo, né mole não...”. Está na Linha 455 há mais de quatro anos e vê vantagens em ser mulher na função de cobradora. “Na empresa mesmo, eles preferem mulheres com mais de 35 anos. Deve ser porque não pega mais barriga”. Márcia trabalha no turno da noite: chega às 20h e sai às 5h da manhã. “Eu prefiro pegar à noite. É bem melhor, o pessoal tá mais tranqüilo, todo mundo tem troco, e eu ainda ganho um adicional. E de vez em quando, se bobear, ainda arrumo uma paquera...”, ela fala com seu sorriso brejeiro.